IV

A corda de Luz — ou seja lá o que fosse — em volta do pescoço de Reiter não afrouxou nem um pouco quando os paladinos o mandaram parar. Reiter ouvia a pele começando a fritar com o calor. As mãos dele se remexiam inutilmente às suas costas, presas pelos pulsos.

Seus olhos... seus olhos. Akarat, meus olhos! Trevas por toda parte. O paladino apontara o dedo para ele, e uma dor disparara dentro de sua cabeça, destruindo sua visão.

Reiter estava cego. Completamente cego.

— Que bom que você veio falar conosco tão rápido, pecador — sussurrou o líder dos paladinos na orelha dele. — Vamos mandá-lo para o julgamento de Zakarum sem muita dor. Pelo menos você me permitiu praticar um pouco. Seus olhos vão permanecer em sua cabeça. — Reiter foi empurrado e ficou de joelhos. Ele respirava chiando, desesperado, e conseguia apenas sugar um fiapo de ar a cada vez.

Ele podia ouvir os três paladinos se espalhando pela rua. Reiter tentou desesperadamente implorar uma última vez — “poupem minha família; levem a cruzada, mas poupem minha família” —mas tudo o que escapou de sua boca foram arquejos incoerentes. Ele caiu de lado. Esforçou-se para ouvir, quem sabe uma porta ou janela se abrindo na rua. Não. Ele compreendeu que não haveria ajuda. Ninguém na cidade iria interferir. Não seria razoável tentar parar aquela luta.

O líder dos paladinos chamou em uma voz forte e clara:

— Herege! A que se chama Anajinn! Eu sou Mestre Cennis. Em nome da fé Zakarum que você escolheu corromper, renda-se imediatamente para ser julgada.

Passos pesados soaram na sacada de madeira da taberna. Reiter via apenas escuridão, mas podia ouvi-la claramente. Ela saía pela porta sem hesitar.

— Taberneiro, escute: Eu farei o que for possível pela segurança da sua família. — A voz de Anajinn estava cheia de pena e tristeza, não demonstrando a raiva e a recriminação que ele esperava.

— Perda de tempo — disse o líder dos paladinos. — Qualquer um que dê abrigo a um herege — qualquer um — deve enfrentar o mesmo destino do herege — acrescentou ele com um sorriso amplo.

***

Portas e janelas se fecharam por toda a rua. Fora isso, nenhum outro som ressoava por Repouso de Caldeum. A cidade inteira prendeu a respiração.

Anajinn olhou os três paladinos. O do meio, perto de Reiter, parecia ser o líder. Os outros dois estavam prontos, mas ela achou que via hesitação em seus olhos. Foi com eles que ela falou.

— Seu líder está falando de assassinar um taberneiro, a esposa dele, e uma criança. A esposa dele está grávida, também — disse ela. — O desprezo era perceptível em cada palavra. — O "Mestre Cennis" os mataria sem se arrepender. Vocês realmente caíram tanto assim? Vocês realmente abraçaram o mal sem hesitar?

Aquilo fez com que Cennis começasse a matraquear outra vez, palavras zangadas sobre justiça, retidão e heresia, mas ela não escutou. Ela apenas olhou os outros dois. Eles se entreolharam.

Indecisão.

Culpa.

Eles sabiam quem Cennis era. Sabiam o monstro que ele se tornara. Eles certamente jamais admitiriam aquilo um para o outro ou para si mesmos, mas sabiam. Eles sabiam, bem lá no fundo, que o que estava para acontecer era errado.

Mas ela viu que a expressão de um deles endureceu. O segundo o imitou em seguida. Apenas ódio permanecia em seus corações. Anajinn abaixou a cabeça. Eles não gostavam daquilo; não apreciavam o que tinham que fazer. Mas fariam assim mesmo. Talvez se arrependessem de suas ações; talvez fosse aquele o momento que algum dia levaria à redenção deles. Mas o preço da redenção seria a vida de inocentes.

O paladino continuou a arengar. Anajinn inspirou profundamente, permitindo que o ar e a Luz a preenchessem completamente. Aquilo não extinguiu sua fadiga. A exaustão parecia corroer cada fibra do seu corpo.

Mas a Luz lhe deu forças. Como sempre. Como sempre faria, até que ela chegasse ao fim da jornada.

— Que seja — disse ela, e atacou.

E a Luz dançou ao seu redor.

***

Um barulho terrível ressoou. Bea recuou instintivamente. Lilsa ouviu em silêncio, com a boca aberta de espanto. Novos barulhos surgiram, o som de fúria descomunal. Sons de batalha.

— Reiter, ah não, Reiter — suspirou Bea.

A aprendiz os levou por trás dos prédios ao longo da única rua da cidade, afastando-as do confronto. Ela levava a espada curta pronta para a luta. A mão esquerda segurava Bea com força.— Continue — sussurrou ela. Outros moradores da cidade estavam fugindo para o deserto, sozinhos ou em pequenos grupos. Pareciam preparados para se arriscar no ermo em vez de ficar um instante a mais ali que fosse.

— Meu marido, ele...?

Ela sacudiu a cabeça. — Enquanto ela viver, Anajinn não permitirá que ele morra. — Outro enorme barulho ecoou em cascata pelos prédios. — E ela ainda vive.

Um barulho tremendo impediu maiores comentários. Alguma coisa — alguém — arrebentou a parede traseira da taberna, tropeçando em meio à areia. Bea ficou sem fôlego. Alguém tinha sido arremessado através da taberna. Pedaços do teto começaram a desabar. Parecia que logo o prédio cairia também. A figura que estava diminuindo de velocidade no deserto não era Reiter, mas quem...

— Para o beco — disse a aprendiz. — Em silêncio.

Bea se deixou ser conduzida para o beco estreito entre as paredes de adobe. — Quem era aquele? Ele estava morto?

A aprendiz deu uma olhada na esquina. — Era um dos paladinos e não, não está morto. — com relutância ela acrescentou: — Ele está tentando flanquear Anajinn. Tentando chegar por trás e de lado para atacar Anajinn. — Ela olhou para a espada e depois para Bea.

— Você precisa ajudá-la? — perguntou Bea.

A aprendiz hesitou. — Ela me disse para não deixar vocês sozinhas.

— Nós vamos ficar longe da luta — disse Bea. Mas a aprendiz não se moveu. — Se eles matarem sua mestra... se eles matarem meu marido, eles vão parar?

— Não.

— Então vá — disse Bea.

***

Anajinn ergueu o escudo e aparou o golpe do martelo. O impacto a fez tremer até os ossos. Ela deu uma olhada rápida pelo buraco na taberna. O paladino que ela atingira estava começando a se erguer. Ela estava mais cansada do que imaginava. Era para o golpe tê-lo matado.

TOs outros dois paladinos avançaram, implacáveis. O paladino líder, o que se chamava Cennis, arremessava martelos de Luz vezes sem conta em sua direção, e o outro arremessava uma salva contínua de setas brilhantes. Ela manteve o escudo erguido, bloqueando os ataques. Quando o segundo paladino chegou a menos de três passos dela, a cruzada abaixou o ombro, se apertou contra o escudo e empurrou.

Uma sólida muralha de poder, de Luz, bateu contra o paladino que se aproximava. Névoa rubra explodiu no ar. Quando a Luz enfraqueceu, o ar permaneceu vermelho. Ossos, apenas ossos, fraturados e secos, caíram na areia. Até as roupas do homem tinham sido estraçalhadas.

Anajinn não exultou com aquela morte. Ela apenas se voltou para Cennis e girou a maça. Com um grito zangado e assustado ele pulou para trás, arremessando outro martelo, que acertou o ombro direito de Anajinn. Agonia mordeu sua carne, mas ela ignorou.

O paladino sibilou e apertou os olhos ao ver o que restava do irmão.— Assassina imunda, filha do demônio.

— Vai ser melhor pra todo mundo se você calar a boca — disse Anajinn.

Subitamente ela se agachou e empurrou o escudo outra vez, mas o paladino reagiu mais rápido que seu irmão. Ele ergueu as mãos e aparou o impacto com um contra-atraque, que fez o escudo da cruzada tremer. Mas ela já se adiantava, girando a maça no alto da cabeça. Ele evocou outro martelo para enfrentar a arma dela, mas a cruzada continuou empunhando o escudo à frente, focalizando a Luz adiante enquanto prosseguia abrindo caminho em meio ao ataque dele, derrubando-o na areia. Então ela atacou com a maça, e uma força pura e branca saltou adiante feito relâmpago.

O paladino grunhiu e ergueu as mãos. Ele pegou o relâmpago. E arremessou de volta.

Ela nem se importou em esquivar. Deixou a Luz atingir sua cabeça e armadura sem piscar.

— Demônia — amaldiçoou o paladino. — Demônia maldita.

— A Luz não fere os justos — disse Anajinn, sorrindo friamente. — Você pode dizer o mesmo sobre o poder que você usa?

Enraivecido, ele se ergueu e se atirou na direção dela. A maça e o martelo colidiram. O choque do impacto estilhaçou janelas de vidro ao longo da rua principal. Anajinn avançou, ignorando seu cansaço crescente e... —

dor

— ela caiu de cara no chão. Arquejando. O escudo já não estava em sua mão. Virando de costas, ela girou a arma, pressentindo sem ver o próximo golpe que se aproximava. A maça de espinhos acertou em cheio a perna direita de Cennis, no espaço entre as placas da armadura. O martelo dele sumiu a alguns centímetros da cabeça da cruzada e ele cambaleou para trás, sangrando e gritando.

Quem a tinha surpreendido? E com o quê? Ela tentou se erguer, mas seus braços e pernas tremeram e cederam, e ela caiu de volta na areia. “Isso não é bom”, pensou ela. Marcas de queimadura se desenhavam em seu flanco esquerdo, e ela estava ficando sem fôlego. Queimada por dentro. Ela jurava que podia sentir as entranhas ficando crocantes.

Bem, pensou ela.Isso é novidade.

Rilhando os dentes, ela se esforçou para ficar de pé, ignorando a dor, a fadiga, a fraqueza. — Você escolheu essa vida — disse ela, para se lembrar. Sua voz soava gutural em seus ouvidos. — Viva sua escolha. Amaldiçoe-a. Só não se arrependa dela. — Sua mestra lhe dissera aquilo há muito, muito tempo. “Continue se movendo”. Ela ergueu o escudo outra vez e apertou os olhos na direção da estrada.

Luzes brilhantes se digladiavam e faiscavam a uma centena de passos dali. Cennis, o Paladino ferido, fazia gestos loucos. O outro paladino sobrevivente, o que Anajinn arremessara através do prédio, estava lá. “Então foi ele quem me surpreendeu”. Ele estava disparando raios contra outra pessoa agora, alguém sem armadura, carregando uma espada curta...

— Ah, sua menina tola — murmurou Anajinn. A aprendiz costumava desobedecer ordens. “Que nem eu”, pensou ela, irônica. Mas a jovem não era estúpida. Inexperiente, mas não estúpida. Se ela não tivesse entrado na luta, Anajinn estaria morta. O segundo paladino teria acabado com ela.

Anajinn viu o taberneiro jazendo impotente no chão, preso pelo poder do paladino, perto de sufocar, julgando por seu rosto arroxeado. Ela se ajoelhou e dispersou a magia com um gesto casual.

Arquejos profundos e roucos irromperam da garganta de Reiter e ele abriu os olhos.

Anajinn recuou. Os olhos dele tinham ficado brancos. Ele tinha sido cegado. Fumaça se ergueu lá no final da rua — era a ferraria, ela imaginou, sacudindo a cabeça. Ela nem queria pensar no que Cennis tinha feito lá. Era um problema para mais tarde.

— Você está bem — disse ela a Reiter. — “Quem dera eu estivesse também”, pensou ela. — levante-se, se conseguir. Você tem que sair da rua. — Ela olhou para cima. A aprendiz ainda enfrentava o paladino. Cennis estava ferido, e o outro paladino ainda devia estar atarantado depois de atravessar as paredes da taberna. Ambos lutavam de maneira instável. A aprendiz estava quase dançando em círculos ao redor deles.

Um sorriso adejou nos lábios de Anajinn. — Seja rápido. O taberneiro tentou falar, mas as palavras surgiram como arquejos roufenhos e assustados. Ele estava tentando dizer “Sinto muito”. Anajinn bateu de leve nos ombros dele. Ela podia ver a culpa escrita no rosto dele, mesmo em seus olhos cegos. — Eles não terão piedade se encontrarem você. Esconda-se bem — disse ela. Finalmente ele conseguiu se erguer e saiu correndo, estabanado, com as mãos estendidas à frente.

— Esconda-se bem — sussurrou Anajinn. Ela não disse a ele que fugisse da cidade. Ela sabia que ninguém em sã consciência tentaria atravessar o deserto do Kehjistão sem uma caravana bem provida. Um cego, cegado recentemente, aliás, não teria a menor chance.

Para manter Reiter e o resto da cidade a salvo, os paladinos teriam que morrer.

Ela viu Cennis mancando enquanto avançava sobre a aprendiz. A jovem avançava e recuava veloz, saindo do alcance dos paladinos. Ela não tinha armadura, e usava a agilidade de forma vantajosa, conseguindo ferir o braço do segundo paladino ao mesmo tempo em que conjurava uma muralha de poder para deter o ataque dele.

Anajinn entrou na luta, sorrindo sinistramente. Que mestra seria ela se deixasse a aprendiz se divertir sozinha?

***

— Por aqui, Lilsa — disse Bea. Era difícil manter a voz calma, mas ela conseguiu. Elas se esgueiraram pela parede do posto comercial, indo em direção à rua. — Só um pouco mais.

Lilsa segurou sua mão, parecendo assustada, mas não gritava nem chorava. — A cruzada vai bater nos bandidos?

— Com certeza — respondeu ela, com mais confiança do que realmente sentia. — Vamos procurar o seu pai. — Ela vira Reiter cambaleando em direção ao outro lado da rua. Medo apertava seu estômago; ele parecera muito ferido e incoerente.

Um rugido atroou no ar, e então houve um longo baque cheio de sons de madeira rachando e paredes desmoronando. Bea ficou parada até a balbúrdia diminuir, deixando apenas a fúria da batalha no ar.

Ela meteu a cara para fora da esquina e perdeu o fôlego na hora.

A Taberna Oásis, seu lar, bem como a nova botica vizinha, jaziam em ruínas. Um golpe possante arrancara ambas dos alicerces. Bea sussurrou uma oração. Ela achava que tinha visto o médico e a esposa fugirem da botica mais cedo. Ela esperava que tivessem conseguido.

Do outro lado da rua, em um beco, Bea viu alguém cambaleando, tateando pelas paredes. Reiter. Para chegar até ele, Bea e Lilsa teriam que atravessar a rua na frente dos combatentes.

“Eles vão destruir Repouso de Caldeum se isso continuar por muito tempo” pensou Bea. Pelo jeito se esconder atrás de um prédio não oferecia abrigo nenhum, julgando pelo poder que manuseavam. Se locomover não era muito mais perigoso que ficar parada.

Ela suspirou fundo e pegou Lilsa nos braços. — Está pronta para ir encontrar seu pai? — perguntou ela. Lilsa aquiesceu.

— Então vamos — disse ela, e correu para a rua.

***

Grunhindo, Cennis continuou arremessando martelos na direção das duas hereges. Repetidas vezes a mulher de armadura aparava os golpes e a mais jovem se esquivava.

Subitamente a moça se aproximou e atacou. A espada cantou na placa metálica do seu antebraço. Foi puro azar que ela não conseguisse decepar seu braço na altura do cotovelo exposto. Ele deixou que ela se afastasse e criou outro martelo. Para atacar por trás dessa vez.

A aprendiz girou e ergueu as mãos para bloquear o ataque, mas Cennis fez o primeiro martelo desaparecer e arremessou outro direto da altura do peito. Ela virou a espada e o martelo atingiu aço em vez de carne, mas o impacto a arremessou bem para trás. Com um sorriso, Cennis voltou a atenção para a cruzada. Anajinn. Ela ainda lutava bastante e encarava os dois paladinos com fria determinação, mas a força dos golpes dela estava diminuindo. Como era o certo. Como sempre acontecia com os inimigos da Mão de Zakarum quando eles enfrentavam a justiça. Ela girou a maça uma vez, duas, três, mas errou os golpes.

— Hora de morrer — disse ele.

— Como queira — respondeu ela. E súbito havia duas cruzadas... três... quatro... atacando...

Com um grito, Cennis atacou loucamente as duas figuras translúcidas que iam em sua direção, cada uma girando uma maça que assobiava no ar. Seus golpes as atingiram, e elas desapareceram feito fumaça na brisa.

O outro paladino não foi tão rápido. Duas outras Anajinns giraram as maças, e os pedaços do homem voaram em várias direções. A névoa desapareceu e só havia uma Anajinn novamente. Ela se apoiou no escudo, exausta mas ainda sorrindo selvagemente para Cennis.

— Diga-me, paladino — disse ela. — Os seus anciãos tiveram que arrastar você para as garras do mal, ou você foi por conta própria?

Cennis olhou para ela com uma expressão selvagem. A aprendiz estava voltando à luta, lentamente, sentindo dor — mas sem hesitar. Por alguns instantes ele só ficou ali. Então se virou e saiu correndo, mancando e sangrando.

Ele ouviu Anajinn grunhir. — Não me faça ir atrás de você — gritou ela. Ele fez uma careta, mostrando os dentes. Medo e fúria lutavam em sua mente. “Tenho que fugir. Tenho que matá-la. Tenho que... tenho que...

No fim da rua, um vulto entrou em um beco. Cennis foi atrás.

***

Anajinn esperou que a aprendiz a acompanhasse. — Podia ter sido pior — disse a cruzada, com um sorriso dolorido.

A aprendiz estava sem fôlego. — O paladino... a esposa do taberneiro...

O sorriso de Anajinn desapareceu. — Onde? — A aprendiz apontou na direção de um beco à frente. Cennis desaparecera lá dentro.

De alguma forma, elas encontraram forças para ir atrás dele.

***

— Reiter — disse Bea, com as mãos segurando o rosto dele. — O que eles fizeram com você?

Seus olhos brancos rodeavam em suas órbitas. — Eu não consigo enxergar. — A voz dele estava trêmula. Ele agarrou os pulsos dela como se tivesse medo de que ela o deixasse. — Ele pegou... Eu não consigo ver. Você está ferida? Lilsa? Ela está aqui?

— Eu estou aqui — disse Lilsa. Os olhos dela estavam arregalados e rasos d’água.

Reiter se agachou, sem olhar na direção certa, tateando. — Lilsa? — Finalmente suas mãos a encontraram e ele a puxou para perto. O torso de Reiter ficou indo para frente e para trás. Seus olhos olhavam para o alto como se tentassem encarar o olhar de Bea. — Eu sinto muito. Eu sinto muito.

— Agora não importa mais — disse Bea, tão firme quanto pôde. — Eu acho... — Ela escutou por um instante. Os sons da batalha tinham cessado. — Eu acho que a luta acabou.

— Quem venceu? — sussurrou Reiter.

Bea abriu a boca para dizer “eu não sei”, mas outra voz a interrompeu. — A Mão de Zakarum sempre vence, imundície.

Lilsa gritou.

***

O grito era inconfundível. Uma criança. — Dê a volta — disse Anajinn, baixinho.

A aprendiz sacudiu a cabeça. — Eu não vou abandonar você.

— E eu não estou pedindo. Dê a volta. — A voz da cruzada não era mais suave. A aprendiz aquiesceu a contragosto e cambaleou dando a volta no prédio — uma tanoaria, pelo que parecia.

Anajinn esperava que o taberneiro e a família já tivessem fugido dali. Mas ela nunca se fiava em esperança. — Paladino! — chamou ela. — Você quer mesmo trazer inocentes para esta luta?

Uma sombra apareceu na esquina do beco. — Não há inocentes nesta cidade. Não quando eles abrigam gente que nem você! — respondeu uma voz furiosa.

Anajinn rilhou os dentes e ergueu o escudo. Ela suspeitava que apelar para a misericórdia dele seria inútil. No entanto, ela podia provocar seu orgulho...

— Então você se esconde nas trevas, é? — ela precisava atraí-lo, precisava dar à aprendiz uma chance de flanqueá-lo. — É assim que lutam os servos da fé?

Com um rugido feroz, o paladino se adiantou. O coração de Anajinn se confrangeu quando ela viu que ele segurava o pescoço de Bea com o braço esquerdo. Seu punho direito pairava alguns centímetros afastado da orelha dela. Para piorar, Lilsa estava nos braços de Bea. A menina agarrava a barriga da mãe, encarando o homem que fazia as duas de reféns.

Faíscas voavam do punho direito do paladino. Bea não tremia nem recuava, mesmo quando as faíscas queimavam sua carne. Ótimo, pensou Anajinn. Não demonstre nada pra ele. Não demonstre nada pra sua filha.

— Será que os anciãos gostariam de ver você agora? — perguntou Anajinn. — Será que a congregação nos templos de Travincal ficaria orgulhosa ao ver um campeão da sua fé se escondendo atrás de uma mulher grávida e uma criança?

Cennis sorriu; era um som desesperado. — Não existe congregação. Não mais. Travincal... Acho que já não existem mais anciãos também. Mas eu vou cumprir a tarefa que me deixaram.

— E que tarefa é essa?

— Hereges. Sempre há hereges. Eu sei o que você é. — Seu riso louco ecoou pela rua. — Poucos da minha ordem sabem. Mas eu sei. Você acha que nós somos corruptos. Condenados. Mas foram vocês que fugiram, cruzada. Você e sua estirpe fugiram. Vocês não enfrentaram nada. Vocês saíram correndo para os pântanos para se esconder. Nós ficamos para cuidar do problema.

— Foi isso que seus anciãos lhe disseram? Eles mentiram.

Foi como se ele não a escutasse. Sua expressão mudou de raiva para horror em alguns segundos. Ele olhava para longe, milhares de quilômetros dali, vinte anos no passado. — Por que você fugiu? Por que você me deixou? — Lágrimas caíram de seus olhos. Sua voz ficou infantil. — As coisas que eles fizeram comigo... as coisas que me forçaram a fazer... Por que você não me ajudou? Você sabia? Você sabia o que esperava por mim. Eles me fizeram odiar. Me encheram de ódio. — Seu punho tremia mas não se afastou da cabeça de Bea.

— Nós sabíamos o bastante — disse Anajinn, baixinho. — O mal já havia dominado os alicerces da fé Zakarum. Nós não podíamos salvá-la. Não sozinhos. Então procuramos algo que podia.

— Vocês encontraram? — A voz de criança outra vez. Esperançosa.

— Ainda não — disse Anajinn.

— Então foi tudo inútil. Tudo inútil. — Cennis pareceu a ponto de chorar por um instante. Então a criança desapareceu e o paladino retornou. Seu olhar endureceu. — Abaixe as armas, cruzada. Abaixe o escudo. Retire sua armadura. Ou eu mato eles. — O braço dele apertou a garganta de Bea. Os olhos dela encontraram os de Anajinn e imploraram, não pela vida dela, mas pela de Lilsa.

Reiter saiu se arrastando do beco, girando a cabeça sem ver nada. — Não — gritou ele. — Minha família. Misericórdia. Por favor. Misericórdia!

— Anda logo, cruzada!

Anajinn viu a aprendiz espiando da esquina da tanoaria, atrás de Cennis. Ela também viu a aprendiz sacudir a cabeça lentamente. Anajinn suspirou. A aprendiz não podia fazer nada, não com o paladino de armadura e com reféns. Um ataque forte o bastante para eliminá-lo também os eliminaria.

Uma sensação de paz a inundou. Ela deixou o cabo da maça escapar de seus dedos, caindo no chão.

— Eu quero que você saiba de uma coisa, Cennis. — ela enfiou firme o escudo no chão, e ele ficou em pé sozinho. — Eu quero que você tenha esperança. — As manoplas caíram no chão. Então o peitoral. A camisa simples que ela usava por baixo estava manchada de sangue e suor. — Eu não encontrei o que buscava. Nem minha mestra, nem a mestra dela. — As ombreiras caíram. Então os coxotes. — Mas apesar disso, eu não me arrependo de nada. Alguém encontrará o que buscamos. A fé será purificada. E não importa o que você faça comigo... — Ela chutou as botas com facilidade — Eu não cheguei ao fim da minha jornada. Minha cruzada continua.

Anajinn viu uma esperança infantil adejar no rosto de Cennis. Mas foi apenas um instante. Só assassinato a sangue frio restava ali. O paladino estendeu o braço direito e um martelo brilhante saltou na direção dela.

Ela manteve os olhos abertos e sorriu até o fim.

***

Bea fechou os olhos com força. Um instante depois, o som morreu. O braço do homem se soltou de sua garganta.

— Não ouse se mover, mulher — grunhiu o paladino em seu ouvido. Ela aquiesceu, mas ele já se aproximava de Anajinn.

Do que restava dela, quer dizer. Bea protegia Lilsa, impedindo que ela virasse a cabeça e visse. Lágrimas assomaram em seus olhos.

— Parece que o fim da sua jornada chegou — provocou o paladino. Ele chutou o peitoral da cruzada. — Parece que sua busca chegou ao fim."

— Não.

Bea e a paladina se voltaram na direção da voz. A aprendiz se postava com a espada na mão. Rugindo, o paladino atirou o martelo nela.

Houve um clangor alto de som e fúria e uma grande nuvem de fogo explodiu onde a garota estava há apenas alguns instantes. Não havia sinal da aprendiz da cruzada.

Por um breve momento.

Luz se abateu do alto. A aprendiz atacou junto. O paladino viu o golpe se aproximando. E uma expressão de alívio infantil passou por seu rosto.

E então acabou.

A aprendiz se ajoelhou perto da mestra e sussurrou algo que Bea não conseguiu ouvir. Mas não havia como não notar as gotas brilhantes caindo na areia. Lágrimas.

A jovem se levantou. Ela pegou o escudo de Anajinn.

— Bea? — grasnou Reiter. — Bea? Você está ferida?

Bea foi até ele. — Eu estou bem. Lilsa está bem.

— Anajinn? — A voz dele tremia. — Ela está...?

— Estou aqui — disse a aprendiz. Bea olhou para ela, confusa.

Reiter inclinou a cabeça. — A-Anajinn? É você?

— Sim — disse a aprendiz. Ela prendeu a última peça da armadura no corpo e se aproximou do homem cego. Com cuidado ela pousou a mão na testa dele e abriu o livro das leis de Anajinn. Suavemente, ela começou a recitar um trecho diferente. Reiter piscou várias vezes. Sua cabeça ia para frente e para trás. Seus olhos já não estavam recobertos de branco. Suas pupilas restauradas iam de um lado a outro. A aprendiz suspirou. — Isso é tudo o que posso fazer. Você está bem?

Reiter olhou para Bea. — Eu consigo... não está... está borrado — disse ele, apertando os olhos. Ele olhou para a moça. — Obrigado, Anajinn. — Ainda havia incerteza em sua voz. Bea compreendeu que ele via apenas um borrão de armadura e pouco mais que isso. — Sua voz está diferente.

— É, acho que sim — disse ela.

O Fim da Jornada

Cruzado

Faça o download da história em PDF